Projeto 198 Livros - #2 (Peru) – Anjos malditos
A República do Peru é conhecida pelos brasileiros (e por todo o mundo) como um dos berços da civilização latino-americana. Ali estava o Tawantinsuyu (Império Inca), que foi a maior organização social da América pré-colombiana e sua cidade sagrada é o ponto turístico mais visitado do nosso continente, as ruínas de Machu Picchu. Saindo dessa perspectiva histórica, pouco do que acontece no nosso vizinho é notícia ou destaque.
Confesso que não faço parte dessa falta de conhecimento. Na faculdade de Letras tive matérias específicas sobre Literatura Andina e Peruana e ainda tive a oportunidade de realizar pesquisas e traduções sobre essa cultura, organizando e participando de congressos bilaterais entre os dois países. Ah, e também tive a oportunidade de conhecer algumas cidades: Puno, com suas ilhas flutuantes no lago Titicaca e Cusco, o umbigo do mundo para o Império Inca, além de subir até os templos de Machu Picchu.
O grande choque cultural que tenho quando conheço algum peruano ou quando me aproximo mais do país é o conservadorismo generalizado e, obviamente, isso se reflete na sua cultura e nas recepções artísticas. Peru é um país altamente católico, resultado das grandes investidas do Império Espanhol em dominar aquela sociedade pagã que cultuava o deus Sol (Tata Inti) e a Mãe Terra (Pacha Mama) e passou algumas décadas sob o terror de uma guerra civil interna que matou cerca de 70 mil pessoas (caso você se interesse pelo conflito armado peruano, recomendo a leitura de "Adiós, Ayacucho", de Julio Ortega, uma dramaturgia que mescla o contexto histórico com as tradições e mitos da cosmogonia andina). Outro retrato desse conflito é o filme indicado ao Oscar “La teta asustada”.
Nesse contexto, qualquer literatura ou expressão de arte dissidente encontra um solo muito difícil de fixar suas raízes, inclusive o grande nome da literatura peruana, ganhador de um Prêmio Nobel é Mario Vargas Llosa, que ainda que tenha particularidades sensacionais em suas narrativas, também é marcado por esse modelo conservador e patriarcal de se fazer literatura.
A dificuldade para transgredir em solo peruano é gritante e não foi diferente com Oswaldo Reynoso que, influenciado pelo movimento “rock’n’roll” dos anos 60 e pela Geração Beat, começou a escrever contos e alguns romances. Antes de entrar nas impressões que tenho do livro, gostaria de justificar minha escolha: ainda que me chame muito a atenção o tema da guerra civil peruana (presente em livros como "Candela quema luceros", de Félix Huamán Cabrera) e também textos tradicionais das culturas nativas ("El pez de oro", de Gamaliel Churata), perceber uma literatura urbana em uma Lima conservadora é um prato cheio.
"Los inocentes" é um romance curto dividido em cinco capítulos, mas que em si carrega um significado muito expressivo. Ao revelar que os jovens peruanos eram jovens como quaisquer outros jovens do mundo, com suas curiosidades sexuais, suas inclinações para quebrar as regras beirando a delinquência e seu desespero para ser aceito por um grupo, o livro foi proibido no seu país de origem e o autor, massacrado pela opinião pública, não encontrou outra saída que não fosse exilar-se. Assim, Reynoso viveu 10 anos na China, tido como um autor maldito em seu próprio país. Mas a fila anda e a catraca gira, não é mesmo? Eis que nos primeiros anos do século XXI, com todas as transformações sociais e tecnológicas que ocorreram na América Latina de uma forma geral, Reynoso teve a felicidade de ser reeditado e o livro, que antes era proibido, foi escolhido pelo Ministério da Educação peruano como uma obra de leitura obrigatória para os adolescentes entre 13 e 17 anos.
Temos aqui cinco personagens, homens adolescentes que estão experimentando os limites da sociedade e seus próprios limites. Cara de Ángel (Cara de anjo) começa sua narrativa sendo perseguido por um senhor que buscava tirar vantagens sexuais do menino. Cara de Ángel busca de todas as formas pertencer ao grupo de amigos do bairro, levando mais em consideração o que o coletivo pensaria de suas atividades que a opinião de sua família. El Príncipe é aquele menino do bairro que vê na delinquência, nos roubos e na marginalização uma ascensão social e de liderança no grupo. Carambola se apaixona e com isso acredita ser mais homem e mais maduro que os amigos, porém mal sabe ele que está prestes a chorar por um coração partido. Colorete está criando coragem para se declarar a uma menina, faz toda sua preparação, mas descobre que essa menina prefere aos homens mais velhos e ele era apenas um pentelho. E Rosquita que no maior estilo James Dean mantém o estilo mau e sempre em evidência nos bares e mesas de sinuca de Lima dos anos 50. É nesse lugar que Rosquita descobre que tudo se consegue com dinheiro e ele pode ser uma mercadoria.
Hormonal, "Los Inocentes" traz cenas de masturbação, roubos e aproximações homossexuais entre os personagens. A linguagem é um marco para a literatura peruana: as primeiras edições do livro tiveram que vir com um glossário explicando as gírias dos jovens marginalizados para o público burguês, que tinha acesso aos livros na época. A narrativa e a temática jovem não acabam na última página desse livro. Toda a obra de Reynoso é marcada pelo calor púbere como em ‘El goce de la piel’ e ‘En octubre no hay milagros’.
Peru é sempre uma surpresa, seja pela dor velada de uma guerra civil que não ganhou a empatia nem notícias no Brasil, seja por apresentar uma cultura ancestral, nativa, escondida até hoje em cada esquina da Cordilheira dos Andes, seja pelas tentativas corajosas de quebrar os paradigmas de um conservadorismo ainda vigente.
Próximo destino:
URUGUAI