A matemática da guerra - como o jogo de poder é denunciado em “Vice”, indicado ao Oscar de melhor fi
O que se pode apreender a partir da dinâmica exagerada utilizada em “Vice”? Fiz essa pergunta algumas vezes e o resultado é sempre o mesmo: o filme denuncia os mecanismos de poder por trás da falaciosa América democrática. Sendo ainda mais precisa, ele expõe de forma didática como pequenos grupos extremamente influentes podem transformar os rumos da História. Interessante enquanto estudo de caso, mas trágico quando nos deparamos com a realidade. Dick Cheney (Christian Bale) exemplifica o elemento oculto infiltrado nas instituições políticas que, durante anos, garantiu a manutenção das pautas conservadoras, até se tornar vice-presidente de George W. Bush (Sam Rockwell). Sua ambição e experiência dentro do sistema fez com que não desempenhasse um papel apenas decorativo. Pelo contrário, imediatamente após a eleição começou a se articular internamente e colocar em prática um senso de sobrevivência desprezível. Toda a cúpula do governo ficou estarrecida ao assistir aqueles aviões atingindo as Torres Gêmeas no dia 11 de setembro de 2001. Menos Dick. O vice-presidente viu uma oportunidade e sabemos quais as consequências de suas manobras.
A transição do jovem Dick Cheney – cidadão de bem, que nas horas vagas bebe um pouco mais e agride quem passar na sua frente – para o lobo da velha política, mentor de Bush na invasão do Iraque, não se dá no âmbito emocional. Assim que consegue um estágio com Donald Rumsfeld (Steve Carrel), adequa-se perfeitamente ao jogo e a evolução do personagem é institucional. Quanto mais casas ele avança na disputa desse poder oculto, ligando-se às pessoas certas, mais parece ter nascido para servir o sistema. Adam McCay, o diretor do filme, disse em entrevista que tentou humanizá-lo. Contudo, nós enxergamos somente o lado ruim de um homem em ascensão. Dick acumula cargos importantes nos setores público e privado, mas o roteiro não apresenta nenhuma habilidade que justifique sua carreira. A teoria de que ele só é medíocre e com uma profunda falha de caráter convence? Talvez. Afinal, deve existir alguma lógica que explique a matemática da guerra. Em “Vice”, essa lógica faz sentido no mundo de pessoas como Dick Cheney.
Sem coração. É o que pensamos do protagonista em cada ato político. A manipulação para aprovar a guerra do Iraque, o olhar flexível para a tortura e a retaliação contra jornalistas são exemplos de quem é Dick Cheney – figura retratada de forma enigmática, cujos sentimentos estão reprimidos de baixo da carcaça republicana. A culpa e a compaixão podem existir, mas são tão diluídas por uma burocracia a serviço do mal, que o personagem só demonstra humanidade nos inúmeros ataques cardíacos que sofre ao longo do filme.
(Alerta de Spoiler) E a metáfora conduzida por esta dúvida – onde está o coração de Dick Cheney? – faz com que o público encontre o narrador (Jesse Plemons). No estilo Memórias Póstumas de Brás Cubas, a história do político é contada pelo cara que salvou sua vida ao se tornar doador de órgãos. Um cidadão comum, responsável pelo sucesso do transplante de um novo coração para o vice-presidente mais influente dos Estados Unidos.
Naturalmente, as cabeças por trás da invasão do Iraque não refletiam sobre as reais consequências de seu modo de governar. Reuniam-se em restaurantes caros para reinterpretar leis, no intuito de respaldar as investidas bélicas contra uma nação soberana. Com os olhos no petróleo, Dick Cheney forjou o terror à espreita e justificou uma guerra mesquinha, em que o número de mortes chega a 600 mil pessoas. Acredito que o verdadeiro impacto de “Vice” reside, justamente, em escancarar a matemática cruel da guerra. O exagero de recursos discursivos e visuais é fundamental para causar uma adrenalina quase desconfortante, como se o público estivesse desmascarando um grande vilão. Entretanto, Dick é apenas uma face desse vilão caricato. É justo lhe atribuir o mérito de um excelente jogador, mas, no fim, todos se curvam à verdadeira semente do mal: o acúmulo de riquezas. Não o dinheiro em si, cobiçado pelos mortais. O que segue definindo as relações geopolíticas, por meio de uma premissa imperialista, é a concentração de capital. Somam-se corpos e os efeitos colaterais afetam o mundo inteiro – a guerra do Iraque contribuiu para o fortalecimento do Estado Islâmico, por exemplo. No entanto, o poder continua seguindo as vontades de quem ocupa o lado oposto dessa conta. “Vice” revela quantas vidas são desperdiçadas para enriquecer uma minoria seleta.
(Alerta de Spoiler) Igualmente, nos distancia dessa elite criminosa. Conhecemos Dick Cheney e seu projeto de poder pela voz de um americano simples, cuja impotência diante das grandes decisões políticas o posiciona no centro da narrativa. Antes de sofrer um acidente e substituir o podre coração de Dick, ele esteve na guerra. Assim, o eleitorado, entidade passiva ao longo de todo o filme, ganha um herói. Os cidadãos são representados pelo homem que constrói uma crônica contemporânea e ácida. Ele não deixa de agir, mesmo quando morre.
“Vice” é insistente em nos passar essas mensagens, unindo um elenco excepcional a um roteiro instigante. A atuação de Christian Bale enfatiza o tom documental, mas Sam Rockwell confere uma nuance autoral ao personagem. Amy Adams desperta repulsa e admiração na pele de Lynne Cheney, esposa de Dick. Mas não devemos nos esquecer de que são pessoas reais. O filme faz eco ao apelo de “Infiltrado na Klan”, construindo uma ponte entre fatos passados e a situação atual dos Estados Unidos. Resta a derradeira lição: a História confirma a regra do poder oculto, permeando o sistema político em nome do grande capital. Cabe ao espectador reconhecer os candidatos que lutam para enfraquecer esse modelo.