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Projeto 198 Livros - #1 – A morte, a donzela e o fim do mundo


A morte e a donzela – Ariel Dorfman

Que pretensão a minha e a desse projeto de ler o mundo através da alguma obra da literatura. Agora que começo, vejo que é uma missão muito difícil e que, sem dúvidas, vai ser uma leitura muito rasa de uma cultura. Mas me proponho a debruçar com atenção, cuidado, carinho e respeito pelas culturas e expressões culturais que por ventura eu me depare nessa caminhada de 198 passos.

Resolvi começar pelo Chile porque tenho uma ligação afetiva muito grande por essa faixinha de terra na beirada do Pacífico. Chile foi o meu sonho durante minha adolescência, foi minha primeira viagem internacional e a experiência mais intensa que já vivi. Logo, não teria outro país para começar essa empreitada.

É bastante comum ouvir de chilenos que o país é o fim do mundo. Austral, com fronteiras expressivas apenas com a Argentina (as fronteiras com o Peru e a Bolívia são muito pequenas). O país é meio isolado do resto da América Latina e do mundo em geral. Porém, ainda que seja estreito, é enorme em extensão e essa extensão garante a diversidade de paisagens, povos e narrativas que costuram a identidade chilena. Ao norte, povoando os desertos estão os povos quéchuas e aymaras e a voz de Gabriela Mistral, primeira mulher latino-americana a ganhar um Prêmio Nobel. No centro está a capital Santiago e as maiores cidades do país. É no vale central, espremido entre a imponente cordilheira dos Andes e o oceano que estão as casas do segundo Prêmio Nobel de Literatura, Pablo Neruda, região de muito movimento cultural e turístico. E ao sul, a voz e a resistência dos povos mapuches. Ainda existe uma ilha afastada do continente americano que é chilena, a Ilha de Páscoa, conhecida por suas impressionantes estátuas moais, dos povos Rapa-Nui.

Isabel Allende, peruana de nascença, mas chilena de coração define o Chile em El cuaderno de Maya como “donde el océano se come la tierra a mordiscos y el continente sudamericano se desgrana em islas”. Nessas ilhas que o oceano mordisca do continente está o berço das maiores lendas chilenas, como as sereias do pacífico, as barcas que levam as almas para o além e o trauco. Como as ilhas são comunidades muito pequenas, as lendas revelam realidade tristes e violentas que são cobertas: o Trauco por exemplo, é uma espécie de anão (ou gnomo) que engravida as jovens. Um mecanismo de defesa da sociedade para evitar confrontar os casos de estupro nessas pequenas comunidades, da mesma forma que a lenda do boto-cor-de-rosa segue vigente na região amazônica do nosso país. Caso queiram conhecer mais as lendas chilenas, a atriz mexicana-brasileira Giselle Itié protagonizou um filme chamado “Caleuche – El llamado del mar” e também existe um lindo trabalho de recopilação de mitos e lendas chilenas chamada Geografía del mito y la leyenda chilenos, escrito por Oreste Plath.


Mas muito além de uma lenda, a obra escolhida para representar o Chile é uma representação da triste realidade sofrida por aquele país – e em muitos países latino-americanos – que foi a ditadura militar. "La muerte y la doncella", em português "A morte e a donzela", é uma dramaturgia escrita por Ariel Dorfman originalmente publicada em 1990 e segundo o próprio autor seu tema central é a “crua e dolorosa transição chilena da ditadura para uma democracia”. No campo das artes cênicas, a obra é a peça de teatro daquele país mais encenada mundo afora, ganhando também uma adaptação cinematográfica.

A ditadura militar chilena aconteceu entre o dia 11 de setembro de 1973 e 11 de março de 1990, quando o general Augusto Pinochet derrocou o presidente eleito democraticamente Salvador Allende. De acordo com a Comissão da Verdade a cifra direta de violações dos Direitos Humanos giraria em torno de 35.000 pessoas, dos quais 28.000 foram torturados, 3.197 mortas (sendo que 1.102 continuam com seus restos mortais desaparecidos), além de 200.000 pessoas que sofreram exílio.

A protagonista da nossa história de hoje é Paulina, uma mulher que foi presa política e torturada em um centro de detenção ao som de sua música preferida, A morte e a donzela, do compositor alemão Franz Schubert. Já na democracia e com o seu marido Roberto sendo uns dos dirigentes da Comissão da Verdade, Paulina se depara em sua casa com o suposto médico que a torturou, que tendo um problema com seu carro na estrada é socorrido por Roberto e é convidado para passar a noite na casa como um hóspede. A verdadeira sacada de Ariel Dorfman é jogar com o leitor ao lançar a dúvida: seria Doutor Miranda realmente o médico torturador ou a acusação é um devaneio da mente fragilizada e traumatizada pelas inúmeras violências?

Confesso que não era nascido na época que o Brasil passou por essa transição de ditadura para a democracia e que até o começo da crise política que o Brasil enfrenta, nunca tinha parado para analisar e entender mais os processos ditatoriais no mundo. É muito angustiante saber, pelo ponto de vista das vítimas, o que acontecia nos campos de tortura. A cultura chilena é muito mais marcada nesse ponto, no Brasil temos outra relação com a memória, mais fraca se me permitem. Ainda hoje, os museus e memoriais chilenos mostram aquilo que não se deve esquecer e, menos ainda, pedir para que volte.

Quando estive no Chile tive uma conversa com uma colega de classe que em três minutos me ensinou muito sobre a diferença entre nossas culturas. Ela me ensinou a diferença que existe entre comemorar e celebrar, até então usados como sinônimos por mim. Celebrar seria festejar e comemorar seria lembrar com respeito alguma data ou feito histórico. Desde então, celebro meu aniversário e comemoro toda a luta que os latino-americanos, aqui representados principalmente pelos chilenos, tiveram em suas diferentes ditaduras. E essa comemoração serve para que eu me enxergue no contexto social e político brasileiro hoje.

Caso você, leitor, queira entender e comemorar no sentido chileno as violências, as lutas chilenas, além da leitura de A morte e a donzela, recomendo também o filme "Machuca", dirigido por Andrés Wood, que, desde a perspectiva do olhar infantil, mostra o período ditatorial chileno.


E também aconselho que vocês escutem a voz de Victor Jarra, cantor popular de resistência que teve suas mãos amputadas na tortura (e que tem o documentário na Netflix que estreou no dia 11 de janeiro, está fresquinho), principalmente as canções “Preguntas por Puerto Montt” e “Te recuerdo Amanda”. Há também o ponto de vista brasileiro da ditadura chilena com o livro “Roleta chilena” escrita pelo jornalista brasileiro que trabalhava no Chile na época da derrocada de Salvador Allende.

Tomando as obras do país que se denomina “finis terrae”, percebe-se que o fim daquele mundo pôde ser adiado pela força popular de resistência, ainda que com suas cicatrizes psicológicas ou físicas, e que essas lutas ainda precisam ecoar para os países vizinhos e pelo mundo. Ainda há muitíssimo para aprender.

Próxima parada:

Peru

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Manu Mayrink é fanática por livros, filmes, séries, música e lugares novos.  A internet é seu maior vício (ao lado de banana e chocolate, claro) e o "Alguém Viu Meus Óculos?" é seu xodó. Ela ama falar (muito) e contar pra todo mundo o que anda fazendo (taurina com ascendente em gêmeos, imagine a confusão!). Já morou em cidade pequena e em cidade grande, já conheceu gente muito famosa e outras não tanto assim (mas sempre com boas histórias). Já passou por alguns lugares incríveis, mas quando o dinheiro aperta ela viaja mesmo é na própria cabeça. Às vezes mais do que deveria, aliás.

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