"Gritos", da Companhia Dos à Deux, transporta para um universo de sonho e reflexão (e é IN
Somos a todo momento atingidos por uma cultura verborrágica, em que a palavra direta é uma das formas mais usadas para se transmitir informações e ideias... ou fazer arte. Em uma sociedade assim, o teatro de imagens, gestual, perde espaço em meio a grande produções cheias de falas explícitas ou músicas em demasia. Confesso que eu mesma já tive um tanto quanto de preconceito com espetáculos mudos, feitos apenas com uma mistura de movimento, figurino, adereço, cenário e iluminação. Ainda bem que o ser humano muda, pois não fosse por isso eu teria perdido a oportunidade de assistir a uma das melhores produções que já passaram pela minha vida: "Gritos" é sem dúvidas um dos grandes destaques em cartaz na cidade do Rio de Janeiro neste momento.
Em cena, três histórias/poemas são contadas em um universo onírico, recheado de ilusionismos e jogos de imagem e luz:
Grito 1: Louise - Louise nasceu num corpo de homem que ela não quer. Ela deseja ser invisível aos olhares dos outros, mas se choca sempre num turbilhão de preconceitos,intolerância e homofobia. A mãe de Louise é uma velha senhora doente,também invisível perante a sociedade e depende totalmente de seu filho(a) para existir.
Grito 2: O homem - Um poema metafórico sobre o homem que perdeu a cabeça. Um muro os divide.A cabeça de um lado, dentro de uma gaiola, o corpo de outro. Um poema gestual entre o sonho, o onírico e o absurdo.
Grito 3: Kalsun - Numa atmosfera surrealista, uma mulher vestida de negro surge revelando sua beleza e seus gestos lentos. Uma dança de amor misteriosa começa, com som de bombas ao longe. Uma bomba interrompe a noite de amor e o drama tem início.
Artur Luanda Ribeiro e André Curti, da Companhia Dos à Deux trabalham há anos com teatro gestual e, aqui, experimentam a transformação de seus próprios corpos em bonecos de proporções humanas. O trabalho contou com a colaboração da marionetista russa Natacha Belova e do brasileiro Bruno Dante. André e Artur tiveram partes dos seus corpos – cabeça, mãos, pés e braços – esculpidos com gesso e depois trabalhados em diferentes materiais. O resultado é SURPREENDENTE e nos leva à ideia da incompletude daquelas vidas ali retratadas.
Eu poderia ficar horas aqui divagando e te convencendo a assistir "Gritos", mas passo a palavra ao diretor, cenógrafo, iluminador e intérprete Artur Luanda Ribeiro, numa entrevista coerente, esclarecedora e um mar de esperança nesse período intolerante e confuso que passamos:
Como surgiu a ideia para este espetáculo? Qual a importância de, no Brasil e no mundo atuais, tratar de um sentimento tão universal porém cada vez mais raro como o amor?
"Gritos" é uma continuidade de uma pesquisa antiga, ao longo destes anos todos de Companhia (já são 20 anos juntos). Os bonecos vieram com uma força muito forte, pelo tema que estávamos desenvolvendo. Na pesquisa veio a fragmentação, a ideia de falta de afeto e rupturas afetivas. Tudo isso foi se transformando em metáforas com estes pedaços de corpos. É como se fosse a representação física da nossa sociedade fragmentada, dividida por muros. Em nossa sociedade, os afetos são divididos física e espiritualmente. [...] Os temas pesquisados foram imensos. O Brasil é o número 1 de assassinatos homofóbicos e transfóbicos. Precisávamos falar disso. E pensamos: o que leva a isso? A falta do afeto dentro de casa. Na encenação, falamos da relação da personagem transexual ela mesma, com a família… Acaba que todo preconceito reverbera dentro de casa e sai dela. É um turbilhão em que a não aceitação e falta de afeto é global, está em todos os lugares. Nossa ideia é que o espectador saia do teatro e, ao passar por um travesti na Glória, por exemplo, possa pensar em toda a complexidade daquele ser humano, em quem ele é, na família que ele tem. Que possa ir além da imagem do momento. [...] Moro fora do país (Artur está na França desde os 22 anos de idade) e tenho uma relação ainda maior com as ideias de preconceito com o mundo árabe, a islamofobia... Vivemos muito isso na França. Sendo estrangeiros, nos perguntávamos porque ninguém vê o ponto de vista destas pessoas, o que elas estão vivendo. A dificuldade de estar lá. O que é essa imigração em massa? Muitos deles gostariam de estar em seus países, mas precisam sair de lá para conseguir viver. O grito é de sobrevivência!
Nós ainda somos muito dominados por teatros com excessos de diálogo e informação sonora e verbal e os espectadores de certa forma se acostumaram com isso. Acredita que há uma carência por mais espetáculos gestuais? Como é a recepção do público ao espetáculo?
Poucas pessoas desenvolvem trabalhos nessa linha, esta cultura não tem muito espaço, as companhias tem pouco espaço pra trabalhar nessa direção. Ao longo dos anos, nós acabamos criando um público e nossa marca é essa, visual, com temas contemporâneos. Desde “Esperando Godot”, em 1998, estamos falando do sem abrigo, do morador de rua; essas pessoas invisíveis da sociedade são nosso foco. O homem contemporâneo, à margem, é dele de quem falamos. [...] "Gritos" é um espetáculo totalmente sensorial, não tem análise intelectual em nenhum momento. A reflexão vem depois; durante, o que acontece é um passeio onírico. O espectador precisa “escorregar no tobogã” pra fazer parte de tudo aquilo. É desta forma que a gente toca o coração. [...] A nossa ideia é fazer mesmo algo popular, no melhor sentido da palavra, porque tirando o requinte e sofisticação inerentes à pesquisa, a linguagem toca direto, tem algo ali que toca direto, que atinge o espectador pelo emocional. Os entendidos vão ter outra leitura estética, mas pouco importa pra mim. O que mais me importa é que aquele que nunca viu fique tocado por isso. Pra mim o teatro precisa ter essa característica, independente de ser visual ou não. [...] O acesso a este tipo de teatro já era de difícil acesso no Brasil, e agora parece que as coisas estão mais complicadas. Mas precisamos melhorar isso; a gente precisa informar as pessoas. E acredito que não cabe mais bombardear com discurso: é preciso fazer com que as pessoas sintam! [...] Nós vivemos na sociedade do medo, medo do outro, medo da diferença...
Qual a diferença entre fazer teatro gestual na França e no Brasil? Como cada um dos países influencia na forma do grupo fazer sua arte?
Eu fui pra França com 22 anos, foi lá que me formei como homem, formei meu pensamento… Minha fase adulta foi toda na França. Então é lógico que eu tive uma influência muito francesa, principalmente por morar uma capital cultural do mundo, onde vi muita coisa e tive influências múltiplas. Mas as viagens nos influenciam demais. Tive a sorte de conhecer diversos lugares do mundo com meu trabalho, e a maior riqueza da Companhia foi poder viajar a África inteira, a Europa, a Ásia, etc. Poder conhecer e ver de perto tantas culturas foi um choque enorme pra gente. Tudo isso influenciou demais o meu imaginário, afinal de contas a gente fala de corpo, costumes, modos… Eu tenho nitidamente no meu corpo como cada imagem me abalou e me transformou. Você não sai da Índia do mesmo jeito que entrou após passar um mês lá. Minha maior fortuna foi ter viajado com meu trabalho e ter a possibilidade de ver o homem em sua multiplicidade. Eu só posso falar do universal tendo a possibilidade de ter visto um mundo mais plural, saindo da minha área de conforto. [...] Lógico que eu estou em um país que desenvolve uma politica cultural única. É claro que a França teve um olhar imediato sobre nosso trabalho e nos apoiou e nos acompanhou. Mas somos uma companhia autogestora há 20 anos, vivemos basicamente da venda de espetáculos. Nunca tivemos subsídio, que seria a cereja do bolo, mas nunca tivemos, nem mesmo na França. [...] No Brasil, o espaço que estamos montando na Glória é um pouco o espelho do que a gente viveu lá e a gente quer reproduzir aqui. (Depois de duas décadas morando na França, a Cia. Dos à Deux passou a ter duas sedes há cinco anos, sendo uma em Paris e outra no Rio – onde a dupla reformou um cortiço construído em 1846, no bairro da Glória. O lugar é a sede do grupo no Brasil e está se estabelecendo como um espaço para abrigar residências artísticas e oficinas.) Estamos numa militância, em um momento muito delicado. Não é o melhor momento para se fazer isso, mas tem algo muito forte dentro da gente que nos impulsiona. [...] Pretendemos fazer este espetáculo enquanto for necessário, usá-lo como uma arma até onde for possível, até a última bala.
SERVIÇO “GRITOS”
Temporada: de 2/2 a 11/3
Local: Teatro Dulcina (Rua Alcindo Guanabara, 17 – Cinelândia)
Informações: (21) 2240-4879 Dias e Horários: de quarta a domingo, às 19h
Ingressos: R$40 (inteira)| R$20 (meia) Capacidade: 429 lugares Classificação indicativa: 14 anos.
Gênero: Drama Duração: 1h30min.
Fotos: Renato Mangolin